Módulo 2 – A neurociência e as demandas da educação infantil – A atividade lúdica e o desenvolvimento da aprendizagem na Educação Infantil
Na organização da EI, embora se note uma especial preocupação com a articulação do ingresso da criança no Ensino Fundamental, deve-se pensar e direcionar o olhar cuidadosamente para as necessidades das crianças durante os seus 6 primeiros anos de vida. Tais necessidades são completamente diferentes das necessidades de crianças a partir dos 6 anos de idade. Isso provavelmente não deve ser algo novo para a maioria dos educadores e profissionais que atuam na EI. No entanto, observa-se que muitas vezes tais especificidades não são adequadamente pensadas e planejadas quando se estruturam as estratégias e práticas educativas, dificultando assim a criação dos espaços e oportunidades para a aprendizagem e o desenvolvimento da criança.
Na EI, este planejamento precisa envolver tanto as atividades pedagógicas e que serão propostas durante o período em que a criança se encontra na escola como atividades realizadas nos diferentes momentos da rotina dela. Tais momentos mostram-se importantes para a experiência da criança e para sua relação com o mundo. Quando falamos em olhar para as necessidades da criança, referimo-nos não apenas ao que será desenvolvido e estimulado por meio das brincadeiras e atividades lúdicas, como também àquilo que envolve o cuidado básico da criança.
As práticas de cuidado básico, como por exemplo o momento da alimentação, juntamente às práticas de higiene e cuidado com o corpo devem ser planejadas, direcionadas e ensinadas e não negligenciadas ou apenas impostas. Todos esses fatores compreendem as demandas deste período do desenvolvimento e, portanto, as ações e práticas educativas necessitam ser integradas.
Quando se pensa a teoria piagetiana, a qual defende a ideia de que durante o “período pré-operatório” as necessidades das crianças entre 2 e 6 anos de idade são completamente distintas das necessidades das crianças em outros períodos do desenvolvimento, precisa-se considerar não apenas que isto se refira às estratégias pedagógicas propostas, como também às práticas de cuidado com a criança. Sabe-se que nesta fase do desenvolvimento cerebral a forma de pensar das crianças é específica e própria. Ainda não há um desenvolvimento completo de um pensamento lógico, por meio do uso de operações lógicas, assim como há uma dependência de orientação do outro para o reconhecimento dos cuidados que envolvem a própria criança. Isso não implica em dizer que as crianças nesta fase do seu desenvolvimento não estejam usando as potencialidades do cérebro. Pelo contrário, reconhece-se que crianças pré-escolares utilizam recursos energéticos cognitivos de forma muito parecida com os adultos. Alguns indicativos, inclusive, sugerem que alguns cérebros infantis, a partir dos 3 anos de idade, podem chegar a ser mais ativos em comparação com o cérebro de um adulto. A questão toda envolve como os educadores direcionam e orientam tais padrões de atividade cerebral para as aprendizagens necessárias e para o adequado desenvolvimento.
Considerando-se que o cérebro se molda a partir das experiências e que a presença de relações positivas com os educadores e cuidadores forma uma base sólida para os processos do neurodesenvolvimento, denota-se uma multiplicidade de caminhos e estratégias pelas quais se pode estimular esse cérebro em desenvolvimento.
O vídeo ilustrativo e didático a seguir apresenta algumas ideias de modelos de interação que proporcionam uma base saudável para o desenvolvimento.
O uso do cérebro neste período do desenvolvimento, portanto, está direcionado à descoberta e ao uso de capacidades imagísticas e sensoriais para captar, se orientar e compreender o mundo. É desta forma que os vários neurônios do cérebro de uma criança respondem aos estímulos. Esse nível de atividade elevado representa um campo rico para estimulação da criatividade, das experiências dinâmicas e multissensoriais. Aqui entra a importância das atividades lúdicas para o desenvolvimento do cérebro na EI. O brincar é sem dúvida a maneira mais adequada de estimular o desenvolvimento de um cérebro, sendo capaz de, ao mesmo tempo, atender às necessidades e exigências da criança e motivá-la para novas descobertas e aprendizagens.
O brincar compreende, em seu ato, um processo dinâmico, de mudanças constantes e que usa esse mundo interativo, multissensorial e imaginativo tão convidativo para as crianças. Diferente de quando tentamos ensinar conteúdos específicos, que tendem a ativar áreas mais pontuais do cérebro, a brincadeira leva a uma estimulação completa deste cérebro. As estimulações física, motora, sensorial e social estão presentes na brincadeira. Isso não só promove o desenvolvimento cognitivo das capacidades de representação, improvisação, significação e socialização, como também atende ao desenvolvimento de demandas emocionais.
É no brincar que a criança passará a experimentar seus sentimentos: alegria, tristeza (frustração), raiva, ciúme, entre outros.
É fundamental que se entenda que o papel do educador no brincar envolve a facilitação e o direcionamento da atividade lúdica para propostas pedagógicas existentes para cada uma das idades ao longo da EI. Isso significa acompanhar o processo e as descobertas de cada uma das etapas do desenvolvimento. O ambiente escolar deve proporcionar uma experiência aberta, guiada, na qual a criança terá espaço para iniciação. Atividades criativas, espontâneas, imagísticas e que estimulem capacidades sensório-motoras ainda devem ser a base das práticas para esta fase do desenvolvimento.
O vídeo a seguir traz uma menina de 7 anos de idade, Molly Wright, uma das mais jovens apresentadoras de talks da plataforma TED, discutindo de que forma a relação que se estabelece, por meio de conversas e brincadeiras, desde os primeiros anos de vida do bebê e que se estende pela infância é capaz de servir de base para o desenvolvimento do cérebro e, consequentemente, favorecer as aprendizagens. Ela ilustra três tipos de brincadeiras que serão mais bem aprofundadas com base nas contribuições da psicologia do desenvolvimento.
A psicologia do desenvolvimento refere três fatores essenciais para a aprendizagem durante os primeiros anos de vida e que devem fundamentar tais práticas. Esses fatores envolvem habilidades sociais que precisam ser estimuladas e que servem de base para todo o processo subsequente da educação. As habilidades sugeridas são a imitação, a atenção compartilhada e a compreensão empática, afinal, as crianças possuem uma capacidade notável de aprender a partir da observação de modelos, reproduzindo uma variedade de comportamentos dos pais e educadores.
Imitação
A imitação possibilita acelerar vários dos processos de aprendizagem. É nesse ponto que o lúdico, por meio das dramatizações, auxilia o educador no ato de ensinar.
Atenção compartilhada
A atenção compartilhada refere-se à capacidade de dividir experiências de percepção de mundo, servindo de base para a comunicação. Isso contribui para a atribuição de significados das experiências e, também, para a aprendizagem de palavras e formas para a comunicação social.
Compreensão empática
A compreensão empática sugere o desenvolvimento da capacidade de reconhecer e sentir emoções, ainda que de forma mais básica quando comparado a etapas seguintes do desenvolvimento.
Apesar de reconhecer a importância da preparação da criança para aprendizagens formais futuras, como por meio da estimulação desde cedo de habilidades de leitura, escrita e matemática, este processo deve ser gradual, respeitando as necessidades e expressões de cada criança. Conforme discutido, existem várias outras necessidades que se atravessam no caminho dos educadores durante este período inicial do desenvolvimento. O risco que se corre em “apressar” tais aprendizagens e deixar tantas outras para trás é o de falhar no atendimento de necessidades próprias da criança.
Como consequência, o que se percebe é o surgimento de problemas de interesse e engajamento da criança, sentimentos de ansiedade, irritabilidade e estresse. Além disso, uma vez que a estrutura pedagógica se torna mais rígida ou direcionada para metas, desempenho e resultados, perde-se a oportunidade de proporcionar condições para uma aprendizagem focada na resolução de problemas, estimulando a cooperação e as experiências sociais e emocionais com os colegas e com os próprios educadores.
Outro ponto importante a ser destacado quando falamos em incentivar o lúdico e o brincar relaciona-se às atividades propostas como tarefas de casa ou extraclasse. O que precisa ser pensado em relação à criação de tais demandas refere-se ao que é esperado para uma criança nesta faixa etária. O que as crianças deveriam fazer com seu tempo livre? Esta simples pergunta pode ser extremamente importante para direcionar tarefas e demandas escolares na EI. Trata-se de uma das perguntas que mais geram debates entre educadores, pais ou cuidadores.
Observa-se hoje cada vez mais cedo uma tendência em envolver as crianças no maior número de atividades possíveis. Não que tais práticas não estimulem e possibilitem novas aprendizagens e descobertas ou sejam importantes para o desenvolvimento infantil.
A preocupação e a maior atenção, entretanto, devem ser dadas à linha tênue que existe entre envolver a criança em atividades favoráveis ao seu desenvolvimento e passar a exigir demais desta criança, gerando estresse e sobrecarga.
A rotina da criança e as tarefas de casa, bem como demais atividades fora do ambiente escolar, não devem restringir o espaço da brincadeira e do lúdico ou, muito menos, limitar os períodos de descanso, levando a criança a um estado de exaustão constante. Do ponto de vista neuroquímico, para que as aprendizagens ocorram, é necessário que não haja uma carga intensa de estressores sobre o organismo e que ele possa ter períodos de descanso. Diversas pesquisas apontam que as horas de sono e descanso são fundamentais não apenas para recuperar a energia, como também para auxiliar os processos de modificações neurais que estão ocorrendo no cérebro e que são responsáveis pelas nossas aprendizagens, memórias e pela retenção e recuperação das informações (retomaremos esta discussão quando falarmos de algumas questões que envolvem o funcionamento e demandas do Ensino Médio).
Metodologias e práticas pedagógicas na Educação Infantil: um cenário de múltiplas possibilidades
Existe uma diversidade de métodos e práticas pedagógicas pensadas e propostas por teóricos e autores com diferentes áreas de formação. Em comum, tais abordagens e inspirações teóricas sugerem a EI como um contexto de possibilidades, com espaço para desenvolvimento de uma aprendizagem criativa e imaginativa, focada na criança e em suas necessidades e expressões. Neste sentido, será proposta uma reflexão à luz de alguns teóricos e autores sobre as demandas e especificidades da Educação Infantil. Abordaremos enquanto práticas e modelos pedagógicos aqueles que se propõem a discorrer sobre como devem ser estimuladas as interações entre a criança e o adulto, os processos de desenvolvimento das aprendizagens, o contexto e espaço escolar e a relação entre educadores, pais e cuidadores. Cabe destacar que tais debates não se limitam apenas aos teóricos que serão referenciados aqui, uma vez que muitos outros pensadores da educação mostram-se influentes no que diz respeito ao desenvolvimento de práticas e estratégias de ensino e aprendizagem.
A ABORDAGEM DE EMMI PIKLER
A abordagem de Emmi Pikler, pediatra húngara, que se consolidou como referência através de suas práticas profissionais e trajetória como diretora de um abrigo para bebês no período pós-guerra, é um exemplo interessante a ser discutido, pois reflete a importância de um olhar atento para a criança. Em sua abordagem, Pikler propõe que a organização e orientação da criança ao longo dos primeiros anos de vida é essencial para atender adequadamente às necessidades básicas e para promover o desenvolvimento. Entende-se que este é um período muito particular, no qual se tem uma centralidade nas relações que se estabelecem entre a criança e os educadores. Tais relações devem se estabelecer individualmente e de forma estável e segura, mesmo quando tais movimentos ocorrem dentro de contextos coletivos, como nas escolas de EI.
A importância do vínculo seguro, como sugerido por autores como Freud e Bowlby, é presente na abordagem pikleriana. A criança, no início do seu desenvolvimento, precisa conhecer a si mesma por meio do olhar atento e cuidadoso do outro (sejam estes pais, cuidadores ou educadores). É neste processo que a criança aprende e significa a sua existência, utilizando-se de recursos verbais e não verbais para estabelecer suas relações. O atendimento de tal reconhecimento seria a base para que a criança passasse a explorar o mundo através de atividades autônomas, brincando com seu corpo, com objetos e dando os primeiros passos para o processo que também inclui a interação com outras crianças. Essa exploração de mundo deve ser planejada com elementos que proporcionem um ambiente seguro e interessante para a criança.
Figura 6. Representações do estabelecimento de relações individuais, que constituem vínculos seguros entre adulto(a) e criança, através do uso de recursos verbais e não verbais
A metodologia é, em sua concepção, uma filosofia de olhar para a criança e acompanhar aquilo que é essencial e necessário para seu desenvolvimento, compreendendo que a relação entre ela e um responsável é a base, mas que é fundamental, também, proporcionar momentos de maior autonomia e exploração.
É a regularidade e a estruturação destes momentos enquanto práticas que possibilitam à criança conhecer a si mesma e prever o que acontecerá com ela, como, por exemplo, ser capaz de reconhecer sua fome e quem será a pessoa responsável pela sua alimentação.
Também, questiona-se o excesso de enfoque que se dá para as atividades dirigidas (proposta pelos educadores de forma diretiva) como as únicas com valor pedagógico e formativo. Neste sentido, percebe-se que essa abordagem não orienta atividades específicas a serem desenvolvidas, como num plano pedagógico ou manual.
Os pressupostos, apesar de simples, requerem uma preparação e uma ruptura com padrões e práticas clássicas e enraizadas em nosso sistema de Educação Infantil. Aspectos da estrutura física, da organização das salas e da rotina precisam ser revistos. O investimento deve ser nos momentos de cuidado e interação como também em quando a criança demonstra iniciativa e interesse no ambiente, por meio de suas ações e construções. É ao longo deste processo que se constroem as aprendizagens e significados.
Deve-se estar atento às práticas que não considerem a relação e a construção de confiança entre criança e educador. Por vezes, o reconhecimento de um bom educador está na sua capacidade de atender a todas as crianças e de envolvê-las simultaneamente em sua rotina de ensino. No entanto, é justamente nesta prática que a possibilidade do não cumprimento da função de vinculação ocorre. Este tipo de situação deve ser construída de modo a proporcionar, aos poucos, transições na dinâmica da criança, a fim de que ela própria consiga direcionar seu comportamento e se engajar nas atividades da rotina.
Figura 7. Crianças brincando sob supervisão de um adulto, mas sem intervenções desnecessárias
Fonte: Nossa autoria (2023).
O brincar dentro da abordagem de Pikler é uma atividade essencial para o desenvolvimento cognitivo e motor. Segundo a ideia proposta pela abordagem, este brincar deve ser livre, tendo o educador apenas o papel de observar e acompanhar o movimento da criança em seu processo. As interferências devem ser as mínimas possíveis, somente quando necessário. Neste sentido, sugere-se que as crianças não fiquem ociosas, mas em constante ação e movimento, por iniciativa própria. Aos educadores cabe manter a atenção e possibilitar um ambiente seguro e com espaço apropriado para que as crianças experimentem as mais variadas sensações. Como expresso por Falk (2011) em seu livro “Educar os Três Primeiros Anos: a experiência Lóczy”: “a atividade de movimento e de jogos livres – sem a participação iniciadora ou modificadora do adulto – reforça as possibilidades especiais de aprendizagem do bebê e da criança pequena que nenhuma outra coisa pode substituir” (p. 35). Ainda, neste sentido, refere:
Temos podido constatar com frequência que a observação e a valoração dessa atividade autônoma (motricidade livre, manipulação, investigação, iniciativas da criança nas suas relações com os adultos) induzem ao respeito no adulto que se encarrega de cuidar da criança: esse respeito se torna um componente importante de sua relação (FALK, 2011, p. 52).
ABORDAGEM WALDORF
A abordagem pedagógica Waldorf, proposta pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner, por sua vez, objetiva o desenvolvimento físico, espiritual, intelectual e artístico da criança, formando indivíduos livres e moralmente responsáveis. A metodologia correspondente a esta abordagem é lúdica e inclusiva, estimulando a aprendizagem por meio das experiências e troca da criança com seus pares. Organiza-se de maneira a formar crianças livres, sensíveis, criativas e responsáveis, considerando que cada uma tem seu próprio ritmo de compreensão e aprendizado.
Figura 8. Contação de história na Educação Infantil
Fonte: Nossa autoria (2023).
Esse ritmo corresponde aos ciclos que foram propostos, devendo-se respeitar as prioridades e demandas de cada ciclo no ato do aprender. Como a EI situa-se no primeiro ciclo, chamado fase de maturidade escolar, o foco do desenvolvimento das aprendizagens deve estar no movimento, na experiência corporal e no uso da imaginação. Desta maneira, o uso de recursos imagísticos como a contação de histórias se faz presente, e o brincar procura ser uma ferramenta aberta e livre, possuindo assim maior valor educativo para a construção de mundo da criança. Explorar o mundo da fantasia e a criação artística é uma das características que definem este método.
ABORDAGEM FREIRIANA
Vários são os autores e estudiosos do campo da pedagogia que oferecem contribuições no mesmo sentido da de Steiner. Paulo e Madalena Freire, por exemplo, afirmam que a autonomia é desenvolvida no processo de aprendizagem em que educador e criança aprendem juntos, seguindo alguns princípios básicos nos quais a criança é protagonista de sua aprendizagem. Tais princípios são: respeito, liberdade, troca e diálogo.
Ainda que siga propostas semelhantes às discutidas até aqui, faz-se importante destacar que, para Madalena Freire, a brincadeira deve ser pensada de modo a construir níveis cada vez mais complexos em suas propostas. Ao educador cabe estar aberto aos questionamentos e desafios que as crianças impõem no ato de brincar, construindo juntamente com a criança suas descobertas e aprendizagens.
Figura 9. Possibilidades de atividades utilizando a abordagem freiriana
Fonte: Nossa autoria (2023).
ABORDAGEM REGGIO EMILIA
Um último importante pensador que trouxe contribuições significativas para o campo da educação de crianças na EI é Loris Malaguzzi, criador da abordagem Reggio Emilia. Em sua abordagem, ele sugere que escutar as crianças — por meio da expressão de suas necessidades — e buscar atendê-las a partir do desenvolvimento de projetos e propostas pedagógicas em sala de aula é o caminho para o desenvolvimento das aprendizagens. Mais uma vez, nesta abordagem destaca-se a organização e o planejamento dos espaços de aprendizagem. São neles que as crianças da EI experimentarão o mundo e farão suas descobertas.
Figura 10. Possibilidades de atividades utilizando a abordagem Reggio Emilia
Fonte: Nossa autoria (2023).
Um ambiente rico em estímulos é reconhecidamente capaz de melhor desenvolver o cérebro. Portanto, considerando-se que os cérebros nos primeiros anos de vida respondem aos diferentes estímulos propostos, faz-se importante voltar o foco dos educadores na construção de ambientes facilitadores das aprendizagens.




























