MÓDULO 1 – Introdução ao estudo da neurociência aplicada à educação: a neuroeducação – Conceitos básicos em Neurociência: fatores ambientais e estressores e o impacto sobre o neurodesenvolvimento e a aprendizagem.
A influência de fatores ambientais e da exposição a experiências adversas e estressoras durante períodos iniciais e sensíveis do neurodesenvolvimento, como a infância e a adolescência, vem sendo uma temática vastamente discutida pela literatura científica internacional. Existe um consenso de que fatores ambientais são capazes de moldar diversos processos do desenvolvimento do nosso cérebro. As consequências negativas, por exemplo, da exposição a situações de maus-tratos e violência têm sido observadas em desfechos comportamentais e cognitivos, como, por exemplo, nos processos de aprendizagem e memória. Tais situações também se mostram associadas à manifestação de problemas psicológicos de caráter emocional ou comportamental, como em casos em que se observa o aparecimento de transtornos mentais já cedo no desenvolvimento do indivíduo.
Para ilustrar a dimensão dos impactos, dados de pesquisas sugerem, por exemplo, que indivíduos expostos a situações de maus-tratos na infância possuem duas vezes mais chance de desenvolverem transtornos de humor e ansiedade, enquanto para transtornos por uso de substância, estas estimativas podem chegar a até seis vezes mais chances.
Algumas destas manifestações possuem relação com alterações significativas que ocorrem nos processos de desenvolvimento do cérebro, como na formação e maturação das estruturas cerebrais e de sua funcionalidade. Mais especificamente, essas alterações afetam regiões importantes do cérebro que se mostram extremamente responsivas aos efeitos dos diferentes estímulos ambientais. Várias destas regiões foram anteriormente apresentadas, a exemplo do córtex pré-frontal, do hipocampo, da amígdala e do hipotálamo.
Modelos teóricos consolidados propõem, por exemplo, que interações entre fatores ambientais e parentais adversos em combinação com nossa predisposição genética, ao longo de períodos iniciais do desenvolvimento, seriam responsáveis por conduzir a modificações significativas na forma como nosso organismo responde ao ambiente e aos estressores no futuro, além de prejudicar o desenvolvimento de estruturas cerebrais localizadas no córtex pré-frontal e no sistema límbico. Essas alterações estariam associadas ao desenvolvimento de um comprometimento cognitivo e psicossocial, uma vez que evidências têm indicado prejuízos de desempenho acadêmico e escolar, baixos níveis de coeficiente de inteligência e prejuízos em tarefas neuropsicológicas de avaliação de aprendizagem e memória.
A exposição a demandas e desafios ambientais durante a trajetória do desenvolvimento representa um processo inerente a todos os indivíduos. Em contrapartida, definir exatamente o que pode representar um estressor em potencial para um indivíduo é algo que se torna um pouco mais complexo. As demandas do ambiente, supostamente estressoras, podem variar em suas características, tanto em relação à sua duração quanto à sua intensidade, ou mesmo na própria capacidade do indivíduo em lidar com aquela experiência, com base em fatores internos e individuais, como seu temperamento e sua personalidade.
Ao longo da trajetória do desenvolvimento, o enfrentamento de pequenos desafios e situações potencialmente estressoras, controláveis, pode ser considerado benéfico, como uma espécie de estímulo para o desenvolvimento do cérebro.
A oportunidade de lidar com certas demandas e a aprendizagem subsequente tornam-se fundamentais para o enfrentamento dos futuros desafios da vida. Por outro lado, se estas demandas e desafios forem além das capacidades daquele indivíduo, estando este ainda despreparado em seu desenvolvimento para responder e lidar com elas, os efeitos podem ser negativos e de longo prazo.
Precisamos compreender, portanto, que a infância e a adolescência representam janelas de vulnerabilidade e de maior responsividade aos estímulos e influências dos ambientes, entre eles o ambiente parental, escolar e social. Ao mesmo tempo que representam um maior risco para desfechos negativos sobre o desenvolvimento, tais períodos também podem ser compreendidos, positivamente, como “janelas de oportunidade”, caso o ambiente em que o indivíduo está inserido seja capaz de proporcionar condições e estímulos adequados para o seu desenvolvimento.
As influências positivas do ambiente são adaptativas e necessárias para o adequado desenvolvimento do cérebro. Ambientes seguros, estáveis e capazes de proporcionar o atendimento das necessidades físicas e emocionais da criança, por exemplo, mostram-se protetivos e favoráveis.
Da mesma forma, como discutido, ambientes estressores e imprevisíveis serão prejudiciais, impossibilitando que a criança tenha suas necessidades básicas atendidas e, consequentemente, causando danos significativos e, até mesmo, irreparáveis para o desenvolvimento daquele cérebro.
Neste sentido, durante o curso do desenvolvimento do nosso sistema nervoso, ele vai se construindo e se estruturando por meio da maturação dos sistemas biológicos de resposta ao estresse, para responder às demandas ambientais e a estímulos estressores. Por esta razão a exposição a estressores extremos e recorrentes durante períodos iniciais tende a ser mais impactante, pois não há uma resposta regulatória adequada já desenvolvida.
É sob essa perspectiva que a Neurociência sugere que não somente os pais exercem um papel central na mediação dos efeitos do ambiente e dos estressores em potencial sobre os filhos, como também a escola, por meio da figura do educador, apresenta-se como um importante ator desta relação.
Sabemos que o estresse pode ter efeitos deletérios sobre o neurodesenvolvimento, acarretando prejuízos cognitivos duradouros que podem se manifestar somente mais tarde e prejudicar o desempenho acadêmico. Como destacado, os processos de aprendizagem de leitura, escrita e matemática, assim como as nossas capacidades de armazenamento e retenção de informações na memória, podem ser afetados. Tais processos são extremamente sensíveis aos efeitos da liberação de hormônios, como o cortisol, hormônio liberado frente a qualquer situação que represente um estressor ou ameaça para os indivíduos em diferentes idades. As mesmas estruturas cerebrais responsáveis por tais processos estão envolvidas também na regulação da resposta ao estresse, tendo seu funcionamento alterado por uma demanda excedente às capacidades da criança ou adolescente.
Discutiremos mais sobre essas relações entre fatores ambientais e estressores e a aprendizagem ao longo dos próximos módulos, nos quais aprofundaremos os principais fatores estressores em cada etapa da Educação Básica, bem como de que forma tais fatores influenciam e devem ser considerados pelos educadores nos processos de ensino-aprendizagem. Este é o olhar que a Neurociência se preocupa e se propõe a fazer, articulando com o campo da Educação e Pedagogia, a fim de explorar e avançar a educação para além das demandas de conhecimento e aprendizagem formal.
MATERIAL COMPLEMENTAR
Links internacionais interessantes:
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